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domingo, 4 de dezembro de 2022

Nosso Sinhô do Samba - Parte 4

Sinhô não se considerava mulato. Numa terra de mulatos geniais, o sambista não topava a classificação. Dizia-se com certa ufania “caboclo autêntico”. Tinha o pernosticismo característico dos homens de cor, sujeitos no seu tempo ainda a restrições vexatórias, de que se vingariam demonstrando inteligência e ousadia e conseguindo destacar-se notadamente em atividades artísticas, o que no tempo não era muito fácil.

Natural que se sentisse vaidoso diante do bom êxito das suas composições e da popularidade que dia a dia mais lhe exaltava o nome. Não se lhe podia negar o sucesso alcançado pelas composições que a cidade cantava e assobiava e que saltavam das ruas para o teatro musicado, em fase de grande animação.

Quando da sua visita ao Rio, os reis belgas demonstraram nítida simpatia pelas produções de Sinhô ao ouvirem música nacional no encouraçado São Paulo, que os trouxe ao Brasil. Dentre as melodias executadas pelo quinteto de bordo, a rainha apreciava especialmente o samba Fala meu louro, grande sucesso de Sinhô. Vasseur, que integrava o conjunto, foi solicitado várias vezes a executar as composições de Sinhô para a rainha. E o jornal A Noite, de 25 de setembro de 1920, publicava pequena nota: “Em uma das últimas refeições no Palácio, S. M. a rainha Elisabeth manifestou desejos de ouvir uma das nossas músicas populares. Por acaso o maestro Pinto de Oliveira, diretor da Orquestra do Palácio, tinha ensaiado o Papagaio louro (Fala meu louro) e executou-o. A rainha aplaudiu a música e seus executantes”.

O compositor carioca quis provar seu reconhecimento aos ilustres visitantes organizando um álbum de suas produções que lhes foi ofertado.

A propósito, conta Augusto Vasseur que o álbum a princípio era feio e mal arranjado, numa capa de papelão ordinário, com a dedicatória grafada no próprio cursivo de Sinhô: “Aos Reis da Bélgica, Srs. Alberto e Elisabeth - oferece Sinhô”. Dedicatória simples e sincera, mas que feria os preceitos majestáticos. Vasseur mandou fazer urna encadernação decente, bonita, com ofertório adequado e impresso.

De qualquer forma, o fato teria de despertar a inveja dos concorrentes. Sinhô conquistava terreno em todas as camadas sociais. Continuava cada vez mais a destacar-se. E não era somente à custa dos trouxas do Rio de Janeiro, como haviam cantado Pixinguinha e China.

Mas não se diga que o sambista vitorioso tenha fugido às camadas de onde viera. Nada disso. Tanto freqüentava a Kananga. como as casas mais ilustres que o acolheram. Era amigo de políticos e figurões que o prestigiavam. Nos morros, ou na zona sul, nos subúrbios ou na Tijuca, Sinhô tinha trânsito livre. Nunca abandonou as chamadas rodas da malandragem. Foi amigo do famigerado Sete Coroas, salteador que se fez famoso, a quem o compositor dedicava um samba que parece não foi gravado, e é raríssimo hoje.

Na fase ascensional de Sinhô tinha ele em Caninha (José Luís de Moraes) não um inimigo, mas um rival de categoria. Eram dois bambas da música popular carioca e não seria exagero o que diria a quadrinha popularizada:

São dois cabras perigosos,
Dois diabos infernais:
José Barbosa da Silva,
José Luís de Moraes.


Essa rivalidade era inteligentemente explorada pelos dois compositores, na época dos mais destacados no Rio. Em 1921 , Caninha já se fizera detentor de alguns sucessos carnavalescos, entre os quais Me leva, me leva seu Rafael (Quem vem atrás fecha a porta) e Esta nega qué me dá.

Também foi Almirante quem relatou no rádio, e depois em palestra, um dos encontros dos dois bambas da música, no ano de 1921, numa festa da Penha, naquele tempo o campo experimental das músicas de Carnaval, na própria expressão da maior patente do rádio. 

Vários grupos se apresentavam visando ao lançamento das suas composições. Para aumentar o interesse competitório, o industrial Eduardo França, o homem da Lugolina e do Vermutin, que foi sempre grande animador da música popular e do Carnaval carioca, instituíra uma taça. Lá estavam Os Africanos (Vila Isabel), o Grupo do Louro e o afiadíssimo Grupo dos Hanseáticos, chefiado pelo Caninha. Uma mu1tidão cercava os concorrentes no festivo arraial. E eram centenas os que já sabiam de cor os versos da bonita marcha lançada pelo Caninha, Me sinto mal:

Ai, ai
Me sinto mal
Depois do Carnaval.
Quando chega o Carnaval
Ninguém lembra a carestia
Vamos todos pra Avenida
E caímos na folia.


Tem gente que cai na farra
Na véspera do Carnaval
Na quarta-feira de cinzas
Sempre diz: me sinto mal.


O Grupo dos Hanseáticos parecia vitorioso. O samba de Caninha despertara o maior entusiasmo. Todos ali o cantavam. Mas eis que se aproxima Sinhô, logo recebido com alegria pelos circunstantes. Chegava sobraçando belíssimo violão cravado de madrepérolas. Cercavam-no alguns companheiros, todos sem instrumentos. Sinhô começou sozinho a cantar sua marcha Fala baixo, especialmente composta para aquele lançamento. Os versos eram fracos. Apenas o estribilho tinha grande força (1). Mas a melodia agradava e daí a pouco eram dezenas os que cantavam o poemazinho; onde havia a palavra rolinha, que bem podia ser referência ao apelido dado a Artur Bernardes:

Quero te ouvir cantar
Vem cá, rolinha, vem cá
Vem pra nos salvar
Vem cá, rolinha, vem cá.

Não é assim
Assim não é
Não é assim
Que se maltrata uma mulher.


Não satisfeito do sucesso da marchinha que se estenderia ao Carnaval de 1922, tornando popularíssimo o refrão, Sinhô ainda lançou outro número de êxito certo, o samba Sai da raia, talvez sua composição mais feliz do referido Carnaval e que seria cantada e executada por grupos e orquestras durante vários carnavais subseqüentes.

Na época, a festa da Penha era de fato uma festa. Depois do Carnaval seria o maior acontecimento popular do Rio. Verdadeiras multidões acorriam ao subúrbio que todo se transformava num arraial de verdade. A imprensa abria colunas largas para noticiário dos domingos festivos durante todo o mês de outubro. E de 1920 em diante até alguns anos depois a Penha seria de fato o início do Carnaval pelo menos no que se refere à música. Compositores e músicos comandando conjuntos amestrados lançavam as composições, muitas delas focalizando a festa religiosa, mas já de olho na festa profana do ano seguinte. Sinhô, Caninha e outros a essa época já eram veteranos da Penha.

O Jornal do Brasil, que graças a seu cronista Vagalume, sempre dispensou atenção especial aos festejos do subúrbio leopoldinense, na sua edição de 23 de outubro de 1911, já estampava algumas fotos, numa das quais aparece Sinhô, ainda não batizado como compositor. Verdadeiras multidões acorriam ao subúrbio e daí a razão dos lançamentos ali das músicas de Carnaval. Composição consagrada na Penha era êxito indiscutível em fevereiro.

Os encontros de Caninha e Sinhô se apresentavam sempre sensacionais. E naquele 1921,  o compositor de Fala baixo e Sai da raia fora o grande vitorioso da Penha, triunfo que se consolidaria no Carnaval vindouro. Mas ali mesmo Sinhô também sentiu o amargo da derrota que lhe infligira o seu temível rival.

Curioso que a vaidade de Sinhô nem sempre o levasse a festivais e espetáculos para os quais era insistentemente solicitado. Tomou parte, contudo, na Noite brasileira, realizada no Teatro Fênix em março de 1927 e na Noite luso-brasileira, em homenagem ao aviador Sarmento de Beires, realizada no Teatro República na noite de 4 de junho do mesmo ano. Nessa festa, José do Patrocínio Filho proferiu uma palestra e Sinhô foi coroado Rei do Samba, depois de vitorioso no concurso ali efetuado.

Quase dois anos mais tarde, em maio de 1929, iria a São Paulo chefiando um grupo que deu uma récita no Teatro Municipal, com a presença do senhor Júlio Prestes, então candidato à presidência da República. O pretexto era o lançamento da marchinha de Freire Júnior, Seu Julinho vem. A propósito do espetáculo, evidentemente uma promoção política.

O Estado de São Paulo, de 21 de maio de 1929, fez o seguinte comentário: “Com a presença e a cumplicidade de altas autoridades do Estado e do Município, o Teatro Municipal, anteontem à noite, esteve em pleno domínio da fuzarca. Certo é que a noitada paulista se não foi uma apoteose ao candidato Júlio Prestes o foi a Sinhô, talvez o maior vitorioso da noite, pois também compusera o samba Eu ouço falar:

Eu ouço falar
Que para o nosso bem
Jesus já designou
Que seu Julinho é quem vem.

Deve vir esse caboclo
Pra matar nossa saudade
Para o riso ser leal
No coração da humanidade.


Essa história que anda aí
De “vem pra ganhar vintém”
Ele no precisa disto
Nem de “aproveitar também”.
(2)

Eu no quero que este samba
Vá contrariar alguém
O caboclo é da fuzarca
E só trabalha para o bem!
Olé!


O sabujismo naturalmente bem pago e de certo modo compreensível levava o popular compositor a tais exageros. O candidato oficial se transformava em ‘caboclo da fuzarca’ e o compositor além de mau profeta chegava a ser blasfemo.



(1) Característica maior de Sinhô. Era um fabuloso estribilhista. (2) Expressões de outra marchinha do ano sobre o mesmo tema.


Fonte: "Nosso Sinhô do Samba" / Edigar de Alencar - Edição FUNARTE - Rio de Janeiro 1981.

Nosso Sinhô do Samba - Parte 3

Sinhô por Álvarus
Sinhô era temperamental. Um emotivo. Daí a tradição de brigão que dele ficou, ainda que as suas brigas não tivessem conseqüências maiores. Indispunha-se momentaneamente com os companheiros e logo esquecia para daí a pouco novamente provocar turras, ou topá-las se a provocação vinha dos outros, o que não era raro notadamente nos seus primeiros anos de compositor.

A glória que lhe veio rápida, embora bem diversa da que hoje favorece os artistas, pois também lhes dá quase a indispensável compensação financeira, mais lhe acenderia os humores. Com apenas dez anos de produção, ganhou ‘oficialmente’ o título de “Rei do Samba” (1) numa época em que não havia muitos disputantes do título. Mas os havia de valor. Pode-se dizer que eram poucos mas bons. O título, no entanto, já lhe outorgara o povo, inclusive através do julgamento de oficiais do mesmo ofício.

Naturalmente pernóstico e além disso atucanado pela inveja e despeito de alguns, Sinhô se mostrava de quando em quando irritadiço. Sobre essa sua característica poucos divergem. Mozart de Araújo teve a impressão de que o sambista era algo intratável. Muito vaidoso. Certa vez o viu deblaterando na Casa Édison. Reclamava, ao que parece, melhor paga e em dado momento, mais exaltado, exclamou abrangendo com um gesto largo as prateleiras do estabelecimento:

— Tudo isso é meu!

Querendo significar que a prosperidade do incansável Fred Figner em grande parte lhe fosse devida.

Sob o aspecto do gênio, Sinhô não é bem referido por muitos dos que o conheceram. Uns o dão como muito mentiroso, ou melhor, gabola.

‘Conversava’ muito. Prometia ainda mais, sem nenhuma intenção de cumprir. Exagerava na vanglória. Tinha talento, afirma outro, mas era pretensiosíssimo. Falava mal de muitos. Era o que hoje se chamaria fofoqueiro.

Manuel Bandeira, que lhe foi apresentado na câmara-ardente de Zeca Patrocínio, na igreja do Rosário, teve impressão terrível do sambista de quem era admirador e a quem dedicou página antológica:

“Sinhô tinha passado o dia ali, era mais de meia-noites ia passar a noite ali e não parava de evocar a figura do amigo extinto, contava aventuras comuns, espinafrava tudo quanto era músico e poeta, estava danado naquela época com o Vila e o Catulo, poeta era ele, músico era ele. Que língua desgraçada! Que vaidade!”

A propósito, R. Magalhães Júnior conta que no velório, lá pela madrugada, Sinhô bastante ‘alto’ se aproximou do caixão e quis prestar uma homenagem ao grande amigo morto:

— Zeca, meu filho... Escuta aqui... Estás ouvindo?

E com o olhar cravado na face do morto, começou a tamborilar um samba na madeira do próprio caixão. De repente, volta-se para Álvaro Moreira, quase num grito:

— Dr. Álvaro, o Zeca está se mexendo!

Heitor dos Prazeres. com quem teve alguns dissídios por causa de trechos de sambas, afirmou que Sinhô era mesmo tratado pelos companheiros como o leviano! Não o considerava mau e sim malandro.

Contudo, mesmo os que fazem ainda hoje tais afirmações não lhe negam qualidades de bom companheiro em outros instantes. E a quase completa ausência de maldade nas suas fofocas e invenções, a que a maioria não dava grande importância. Brigava com todo mundo, mas ninguém era seu inimigo. E teve amigos devotados e entusiastas como José do Patrocínio Filho, Luís Peixoto, Álvaro Moreira, Vila-Lobos, Benjamin Costalat, Mário Reis, Augusto Vasseur etc. Procurava ser polido, era divertido e exuberante e se esmerava no trajar.

Juntem-se à vaidade, ao renome que logo granjeou, as dificuldades da vida, os seus problemas de ordem íntima e sentimental e a inveja que provocava e aí estarão justificados as suas brigas e azedumes.

Quando lançou o Quem são eles?, teve réplicas até de Hilário, o bom Hilário. A que mais lhe deve ter atingido foi, repitamos, a invectiva sonora dos irmãos Pixinguinha e China, na verdade a mais impiedosa, pois além de lhe espinafrar a carcaça, aludia a seu fracasso na flauta, instrumento aliás que nunca o seduziu. Ferino e direto, o samba-resposta a um simples título tomado como deboche tonteou o sambista estreante que procurou contornar a situação (2). Aproximou-se do Clube dos Democráticos, a quem dedicou o samba Confessa meu bem (3), composto para o Carnaval de 1919. Ele mesmo ao piano, na sede do veterano clube, iria divulgá-lo. Ou trabalhá-lo, como se diz hoje. E já na primeira noite de apresentação, toda a sala acompanhou o pianista-compositor. cantando:

Confessa, confessa
Meu bem
Fala, fala, fala,
Meu bem
Que eu não digo nada
A ninguém.

Lingua malvada e ferina
Falar de nós é tua sina
Vou-me embora, vou-me embora
Desse meio de tolice
Estou cansado de viver
De tanto disse-me-disse
Ai, que gente danada
Ai! Não confesso nada.


Como se depreende dos versos, Sinhô aí faz alusões claras e diretas. Inegável que não somente topava provocações como as fazia. Revidava indiretas (ou diretas), formulava queixas em tom nada cordial e gostava de caricaturar também. Em Pé de pilão, marcha carnavalesca de 1922, ao lado de um estribilho lírico, traça um perfil gaiato.

És um mofino,
fino
És narigudo
gudo
Tens pernas finas
finas
E és pançudo
çudo.


Teria endereço? Quem sabe lá? Talvez simples brincadeira. Mas, e em outras composições?

Para o prestígio de Sinhô, cada vez mais acentuado, deveria ter contribuído a sua amizade com o negro Assumano. Henrique Assumano Mina do Brasil, ou o Pai Assumano. Almirante assim se refere ao famoso negro que faleceu em 1933: “Era uma figura impressionante de preto: morava no número 191 da rua Visconde de Inhaúma, num sobrado que conheci. Na sala, nos quartos, pelos tetos, estavam penduradas ervas de virtudes medicinais que espalhavam um cheiro acre que fermentava o ambiente, porque as janelas nunca se abriam. Ninguém ali podia assobiar, falar em mulher ou no diabo”.

Assumano era compadre de Irineu Machado e, segundo a versão corrente, Sinhô nele cria cegamente e não lançava nenhuma das suas composições sem receber previamente a bênção do Príncipe dos Alufás, da lei de Mussulmi ou Mussumiri. Mariza Lira informa que “a primeira audição de suas músicas era feita na residência de Assumano. Acreditava Sinhô que a popularidade de suas composições era devida, unicamente, àquela influência espiritual”. E acrescenta, divergindo de muitos e talvez um pouco aquém da realidade: “Modéstia natural dos que têm valor”.

Certo é que o sambista, como nota ainda Almirante, apesar de carioca legítimo, tinha especial predileção pelos costumes da Bahia e crendices dos seus negros. Sua paixão pela temática baiana viria a criar-lhe casos e despertar ciúmes dos baianos falsos ou legítimos do Rio.

A briga musical já não seria evitável. Sinhô, vitorioso, contando facilidades para a edição das suas composições, não perderia ensejo de responder às críticas e remoques com que o feriam. E uma dessa respostas, dentro da linha fetichista, era o Vou me benzer (1919-1920), também denominado As Criaturas:

Há criaturas que vivem
Porém com tal influência
Que parece ser por elas
Que a gente tem existência.

Vou me benzer
Para me livrar
Desses maus olhos
Que querem me botar.


Desenho de Acquerone - Arquivos Almirante
Museu da Imagem e Som
As suas implicâncias com o China, irmão de Pixinguinha, ainda o fariam voltar à liça e dessa vez com uma composição que seria o maior sucesso popular a marchinha pioneira O Pé de Anjo (1920). Ao que dizem, Sinhô pretendia fixar na marcha os pés enormes de Otávio da Rocha Viana, o China:

Eu tenho uma tesourinha
Que corta ouro e marfim
Serve também pra cortar
Línguas que falam de mim.

Ó pé de anjo, Ó pé de anjo
És rezador, és rezador
Tens um pé tão grande
Que é capaz de pisar
Nosso Senhor, Nosso Senhor.


Certa vez um dos seus desafetos ocasionais (4) tentou agredir o compositor de Quem são eles?. A turma do deixa-disso, não-faça-isso (hoje: deixa-pra-lá) impediu que a coisa se complicasse. Mas Sinhô não esqueceu a ofensa e se valeria do seu habitual processo de revide ou provocação, lançando o samba De boca em boca (1921), depois popularizado com o título O Boi e mais tarde reeditado com a denominação de Segura o boi. Tanto no subtítulo como nos versos era evidente a reação:

Vou lhes confessar sem temor
E mesmo posso jurar
Eu tenho fé em Deus
Que não hão de me matar.

Segura o boi
que o boi vadeia
o boi só está bem
nas grades de uma cadeia.

Deus só quem tem direito
De minha vida acabar
Fica maluco, ó sim
Quem nesta coisa pensar.


De 1924 é Ave de rapina, nome de samba nada carnavalesco. Os versos ao que parece são uma queixa, uma incontida recriminação:

Quem dá esquece
Quem apanha quer vingar
O tempo é pouco
Pra quem não pode esperar.

Apita agora
Ave de rapina
Apita agora
Que é a tua sina.

Formaste o pulo
Como a onça mais ligeira
Fizeste capa
Da nossa pura bandeira.


Simples poema de carnaval ou válvula aberta para a diatribe com uma ave de rapina que apita?

Entre os seus desafetos houve quem o achasse língua ferina. E até Manuel Bandeira, como vimos, taxou-o de língua desgraçada. Mas, por seu turno, o sambista nunca cessou de queixar-se da língua ferina dos outros. Em Quando come se lambuza, samba do Carnaval de 1923, de boa letra, assim a conclui:

Arria a mochila e fala direito
Arria a mochila e fala direito
Tu sabes, língua ferina
Quem é bom já nasce feito.


A frase do último verso lançada no samba Fala meu louro ele a repetiria ainda em outras composições, como no samba de 1928 Quem fala de mim tem paixão, variante do nome de um bloco carnavalesco (Quem Fala de Nós Tem Paixão). Esse samba Sinhô o classificaria de ‘sambamaioral’, o que é outra fórmula de provocação. E não se esqueça que já na famosa marchinha O Pé de Anjo, o compositor se queixava da língua ferina dos outros advertindo sobre a existência de uma tesourinha para cortá-las. O tema ainda retornaria em 1928, quando lançou o samba Tesourinha, em cuja capa (edição Irmãos Vitale) figura uma grande tesoura cortando a língua de um mulato esvaporido (desenho de Wantick).

Felizmente as brigas de Sinhô acabavam em sambas. As agressões, os remoques, a inveja, as provocações e injustiças instigavam o compositor. E o que ele não podia revidar em taponas, tiros ou palavrões, faria mais tarde em sambas, alguns verdadeiras jóias do nosso cancioneiro, cujos versos não traíam os motivos rancorosos dos quais se originavam.

Sabiá (1928), uma das suas mais belas composições, foi composta logo após o desenlace de um dos seus casos sentimentais. De início Sinhô quis reagir violentamente. Confidenciou suas mágoas e seus intuitos a amigos, mas acabou o Sinhô brigão de gênio bom extravasando sua queixa e sua vingança pela forma habitual, a canção:

Quem roubou o meu sossego
A Deus eu fiz entregar,
Pois eu hei de ver no mundo
Alguém por mim se vingar.


Mariza Lira dá versão à notícia de que era sempre com emoção, que ia até à água nos olhos, que Sinhô ouvia cantar esse lindo samba.

Alguns biógrafos e historiadores relatam que para se impelir o nosso José do Patrocínio (pai) aos grandes rasgos de eloqüência bastava que o insultassem, espicaçando-lhe os brios, com a invectiva marcante: - negro!

Com Sinhô dar-se-ia quase a mesma coisa. Quem quisesse empurrá-lo a produzir música o invectivasse.

Resposta a tais afrontas é o samba Macumba (1923), embora aqui a réplica, segundo informação de Almirante, se baseasse ainda em razões de ordem sentimental. De qualquer forma o compositor se defendia:

A inveja é um fato
Que nunca tem fim
Podes vir de feitiço
Pra cima de mim.


E o mesmo infatigável Almirante, a quem se devem todas as primeiras pesquisas a respeito de Sinhô, que informa ter havido em 1920 encrencas do sambista com o Caninha, o Nozinho, o João da Baiana e o Chico da Baiana. Brigas e arrufos que ele esquecia rápido, principalmente se lhe sopravam a gaforinha os ventos veludosos da fama. Era um espadachim teórico. Brigava mais de papo que de sopapo. Sua arma predileta era a solfa. Sua cunhada Maria Barbosa da Silva achava-o calmo e ponderado, inimigo de brigas e de escândalo. E conta que certa vez, levando a sobrinha a uma festa no subúrbio, lá começaram a surgir confusões. Sinhô retirou a moça e suas amigas, abandonando o baile ainda que sob os sussurrados protestos das jovens.

Revide ou agressão também terá sido o seu samba Três macacos no beco (1919), alusão direta e inegavelmente engraçada aos irmãos Pixinguinha e China e ao Donga. E outras questões surgiriam ainda motivadas, segundo seus opositores, por se apropriar de trechos musicais alheios, encaixando-os em suas composições. Mas isto será assunto de outro capítulo.

Seja dito ainda em abono do gênio brigão de Sinhô, que o provocavam aqui e ali os que tentavam negá-lo e não se conformavam com a sua ascensão algo vertiginosa. Vertiginosa para o ascensionário e para os que o viam subir. E repita-se que a glória do compositor era limitadíssima. Não o tornava rico, não o fazia escalar melhor nível da vida. Talvez nem lhe desse mesmo satisfatórias condições econômicas. Era apenas a glória popular, de certo modo a que “fica, eleva, honra e consola”.

Sinhô viveu para a música e da música. Pobremente. Por algum tempo foi estafeta dos Correios. Mas, de uma feita saiu para entregar a correspondência. Encontrou companheiros das rodas de samba. Ficou-se de conversa e bebida e acabou perdendo a correspondência. E também o emprego (5).


(1) Já em 1922 as suas músicas eram editadas com seu nome e apelido seguidos da designação - O Rei do Samba. A coroação de 1927 foi assim duplamente simbólica. (2) O samba Já te digo logo se tornou popular. A sátira, a pilhéria com o colarinho pé dc Sinhô agradou em cheio. Um sucesso! (3) Gravação Odeon 121528, por Eduardo das Neves. (4) Segundo afirmações de. alguns, Dirceu de Almeida Vale. O incidente origem em comentários políticos. . . (5) Ao que parece a exoneração se verificou no quatriênio Bernardes e teve também como agravante a influí-la a ousadia de Sinhô ao lançar a marchinha Fala baixo, no Carnaval de 1922, fato que por pouco não o levou à cadeia.


Fonte: "Nosso Sinhô do Samba" / Edigar de Alencar - Edição FUNARTE - Rio de Janeiro 1981.

Nosso Sinhô do Samba - Parte 2


Afastando-se do grupo da Tia Ciata, Sinhô tomou gosto pela composição e pelas brigas...

O pianeiro ansiava por se escapar dos limites do teclado para se projetar com maior amplitude além das sociedades recreativas, cenário onde era figura de prol. Se o Pelo telefone (1916-1917) não tivesse alcançado tão grande sucesso talvez a coisa serenasse e acabasse esquecida. Mas o êxito da composição de equipe refletindo-se apenas num dos seus componentes criou o clima para a dissensão e para a desforra. Sinhô, Donga, Pixinguinha, China, Hilário e João da Baiana não ficaram inimigos pessoais. Mas começaram a guerrear-se musicalmente, o que não deixava de ser proveitoso à nascente música popular carioca.

Ainda em 1917, pelo Carnaval, sendo diretor-geral do Grupo As Sabinas da Kananga, Sinhô compôs a marcha-rancho Resposta à inveja especialmente para o grupo e como réplica à marcha Inveja, lançada pelo Bloco Quem Fala de Nós Tem Paixão. Afora uma ou outra polca que não passara das salas em que tocava, parece ter sido essa a primeira composição de Sinhô. Não editada e nem gravada. Começava assim o futuro grande compositor do Rio aparando o pião na unha. Tanto a música como os versos eram do ‘inspirado maestro’, tal qual noticiou o Jornal do Brasil, de 14 de fevereiro. Eis os versos:

Coro geral
São as baianas
Que oferecem esta canção.

Coro só
De coração.

Diretor
Aos maus-olhados
Isto não ligamos 
Pois com arruda
Facilmente lhes tiramos.

Damas
E para a inveja
Temos urna figa
Feita na África
Com o bom guiné de riga.

Era o princípio e era bem o Sinhô que surgia topando paradas comprando briga e já afirmando as suas crendices e superstições. Essa marcha-rancho seria refundida e transformada no samba aparecido em fins de 1921, para o Carnaval de 1922 — Não posso me amofinar. Além da transformação rítmica Sinhô acrescentou uma estrofe talvez para justificar o título, coisa que não lhe importava muito, aliás:

Eva, qua, qua, qua
É preciso lhe explicar
Que a vida é curta
E eu no posso me amofinar.


No Carnaval de 1918, Sinhô receberia o batismo de fogo com o samba Quem são eles, sua primeira produção divulgada amplamente através de um bloco que organiza, com flauta, cavaquinho, violão, violino, trombone, pandeiro, reco-reco e ganzá. O grupo filiado ao Clube dos Fenianos tinha a mesma denominação do samba. Segundo pesquisa de Jota Efegê, foi o grupo que deu título à composição de Sinhô e não esta àquele. (1)

Sinhô quisera apenas homenagear o bloco filiado a um clube que bem o acolhia. Mas como na denominação essencialmente carnavalesca, bem ao jeito dos pufes e proclamações das três grandes sociedades, era evidente o desafio, a provocação, não somente os demais se sentiriam atingidos como também o grupo de compositores adversos, chefiado por Pixinguinha. Tanto mais que no texto do samba se falava na Bahia, ainda que com alusão às encrencas políticas da boa terra, com Rui de um lado e J. J. Seabra do outro. De qualquer forma, daí por diante se verificaria que grande parte das composições de Sinhô encerrava referências, veladas ou não, indiretas, quando não no miolo, pelo menos na cabeça, isto é, no título.

o samba Quem são eles fora antes cantarolado por Sinhô ao piano na Casa Beethoven. Possuidor de ritmo próprio e com um fraseado que o distinguia, embora nada soubesse de música, Sinhô encaixara a melodia a jeito nos versos pitorescos que em pouco tempo os presentes àquele estabelecimento cantavam gostosamente:

A Bahia é boa terra
Ela lá e eu aqui; Iaiá,
Ai, ai, ai
Não era assim que o meu bem chorava

Não precisa pedir que eu vou dar
Dinheiro não tenho mas vou sambar

Carreiro olha a canga do boi
Carreiro olha a canga do boi
Toma cuidado que o luarjá se foi
Ai! Olha a canga do boi!
Ai! Olha a canga do boi!

Na Casa Beethoven, Sinhô tinha como colega de trabalho a pianista Cecília, sua admiradora e mais tarde sua companheira. A moça instou para que o novo autor entregasse o samba para a casa editá-lo, o que conseguiu com algum trabalho. Cecília exerceu grande influência na carreira do compositor. O músico nato teve assim a ajuda valiosa de uma Cecília, que não era nenhuma santa, mas foi sua protetora por algum tempo.

Muito interessante a edição da Casa Beethoven da parte musical de Quem são eles? O desenho é curioso (figura ao lado). Um sujeito encartolado, bem vestido, de luva, dentro de um barco solitário que vaga serenamente com a bandeira dos Fenianos no mastro. Perto um negro grita por socorro, como se estivesse a morrer afogado. O cartola nem como coisa. Tudo muito ingênuo.

Bem divulgado pelo bloco feniano, o samba alcança retumbante sucesso no Carnaval de 1918, estendendo-se por todo o Brasil. Era a vez de Sinhô.

A música buliçosa e os versos misturando sertão com política agradariam em cheio e seriam repetidos nos carnavais subseqüentes das províncias, onde chegavam ainda que retardados, levados por viajantes ou pelas chapas da Casa Edison, Rio de Janeiro. Além dos gramofones que martelavam o samba, correu vários Estados um filme musicado — Carnaval cantado — que reproduzia sambinhas, cateretês e marchas de sucesso na grande festa carioca de 1918: Quem são eles?, Vamo, Maruca, vamo, A Carta que te mandei, etc. Essas músicas eram geralmente transmitidas com o filme nos cinemas, ou executadas ao piano, nas sessões infantis. A criançada e a juventude presentes faziam coro ruidoso e mais se popularizavam as composições. (2)

E o já conhecido pianeiro das sociedades da Cidade Nova daí por diante figuraria em definitivo no cancioneiro popular do Brasil.

A denominação do samba parecera indireta (muito direta) à turma do Pixinguinha que topou a provocação. Donga replicou com outro samba — Fica calmo que aparece. Hilário também contraditou com o seu Não és tão falado assim. E finalmente Pixinguinha e China lhe deram mais agressiva resposta com o samba Já te digo:

Um sou eu
E o outro eu já sei quem é
Ele sofreu
Para usar colarinho em pé.

Vocês não sabem quem é ele
Mas eu lhes digo
Ele é um cabra feio
E fala sem receio
E sem medo ao perigo.

Ele é alto, magro e feio
E desdentado
Ele fala do mundo inteiro
No Rio de Janeiro.

No tempo em que tocava flauta
Que desespero
Hoje ele anda janota
A custa dos trouxas
Do Rio de Janeiro.

o retrato físico era cruel, mas não falso. Sinhô que trajava com certo esmero e usava chapéu Randal (tipo Gelot) era desdentado, o que não lhe causava maior vexame, embora lhe originasse o cacoete de levar instintivamente a mão à boca quando ria, para disfarçar um pouco a derrocada dentária. Sendo vaidoso e não desleixado, pode-se avaliar o pavor que lhe inspiravam os dentistas...

Compositor autenticamente carioca, Sinhô buscou na Bahia motivação para várias das suas composições, umas de exaltação outras de crítica, mas de qualquer forma destacando sempre a boa terra. Principalmente nos primeiros anos da sua atividade de compositor, quando no eram poucos no Rio os compositores baianos ou descendentes. Daí ciumadas e daí revides. Sinhô aparecera no seu primeiro samba repetindo ironicamente o dito:

A Bahia é boa terra
ela lá e eu aqui.

E mais tarde viria com Fala meu louro (1920), saborosa sátira ao grande Rui, uma das suas admirações:

A Bahia não dá mais coco
Para botar na tapioca
Pra fazer o bom mingau
Para embrulhar o carioca.

Papagaio louro
Do bico dourado
Tu falavas tanto
Qual a razão que vives calado

Não tenhas medo
Coco de respeito
Quem quer se fazer não pode
Quem é bom já nasce feito

Com muito espírito, o sambista carioca mexia com o senador baiano, mas a referência à Bahia iria esquentar novamente os ânimos. Os brios dos baianos autênticos ou folheados se julgaram ofendidos. Além do mais, o samba fora acusado de plágio. Hilário, baiano legítimo, chamado o bom Hilário, um dos maiorais da colônia e prestigioso carnavalesco, pôs a bondade de lado e espinafrou o sambista, acusando-o de plagiário e desafiando-o com um samba de versos bem feitos. Aquela indireta de a Bahia não dar mais coco não devia ser somente com o genial político mas principalmente com os sambistas da boa terra radicados no Rio. Assim era o poema-revide de Hilário no samba Entregue o samba a seus donos:

Entregue o samba a seus donos
É chegada a ocasião
Lá no Norte no fazemos
Do pandeiro profissão.

Falsos filhos da Bahia
que nunca pisaram lá,
que não comeram pimenta
na moqueca e vatapá,
mandioca mais se presta
muito mais que tapioca.

Na Bahia não tem mais coco
Ë plágio de um carioca.

Pedro Paulo, outro autor do tempo, também pulou na arena defendendo os baianos no samba Olé:

Todo mundo faz um samba
Eu também quero fazer
Mas dizer que é na Bahia,
Olé 

Não pode ser

A Bahia é boa terra
Já não dá mais coco!
Não! Quem quiser tudo saber erra,
Olé

É toleirão

Pelo saco tudo passa
Basta falar em iaiá
Mas um sambinha sem graça,
Olé 

Não vem de lá.

Sinhô não se atordoou com a grossa pancadaria, pois em 1921, no samba Sempre voando, etiquetado pelo autor como ‘puro samba’, afigura-se espantado de haver ‘pai-de-santo’ na Bahia:

Já descobri meu bem
Coisa que causa espanto
Na Bahia tem, tem
Gente que é pai-de-santo.

Se o sambista pagava alto pelo seu constante voltar-se para os motivos na Bahia, também não perderia jamais o ensejo de fazer sua provocaçãozinha. De quando em vez o fazia. Ainda em 1927, tanto tempo decorrido, o Correio da Manhã de 16 de janeiro publica uma versalhada de J. B. Silva sob o título Carioca, com dedicatória a Cícero de Almeida:

Não penses que eu vou fugir
Às quadras do teu sentir
Pois quero de novo rir!
Com teu modo de carpir
o teu sertão a zunir
A tua terra a tinir
A baianada a mentir
Pois quero de novo rir!

Do coco que está partido
Da cobra já sem perigo
Do chumbo derretido
Da cascavel sem abrigo
Do teu sertão a zunir
Da terra ouca (sic) a tinir
Da baianada a mentir
Pois quero de novo rir.

Rima em abundância e endereço certo...

Músico nato, Sinhô deu nítida preferência ao piano. Talvez porque na casa do avô houvesse um. Mas, afora o piano (que não podia ser removido), adorava o violão, seu companheiro de deambulações boêmias e ao qual demonstrava carinho enternecido. Certo é que o caboclo poderia tocar qualquer instrumento popular desde que se lhe dedicasse de alma e coração. Passou pela flauta, pelo flautim e pelo cavaquinho. Foi ao piano que conseguiu maior prestígio. Em 1910, já é pianista querido do Dragão Clube Universal (do Catumbi), que nos anúncios de bailes fazia constar: “O nosso pianista será o Sr. J. Silva (Sinhô), o conhecidíssimo chorão das molecas chorosas”.

o superlativo e a piada dizem bem da popularidade já conquistada pelo então simplesmente J. Silva. A citação do nome e apelido do pianista nos anúncios e convites era motivo de atração, daí não ser omitida.

Pianista será mais tarde do Grupo Dançante Carnavalesco Tome Abença a Vovô, do Grupo Dançante Carnavalesco Netinhos do Vovô, da Kananga do Japão etc. E é dedilhando um teclado que aparece na famosa caricatura de K.lixto, com a coroa de Rei do Samba, que tanto deveria pesar na cabeça dos outros. Caricatura que foi cenário de uma revista na Praça Tiradentes, depois da sua morte.

Na opinião dos que o tiveram de perto, Sinhô tinha o sentido da música embora de início quase nada conhecesse teoricamente. Tocava de ouvido mas o fazia com técnica especial. Tinha um fraseado bem seu e corria o teclado com entusiasmo, gingando, como fazem hoje os pianistas de jazz e bossa-nova.

Contemporâneos seus lhe testemunham a maneira pessoal de tocar com ritmo próprio que enfeitava com fraseados característicos. Já então não era ignorante da música, pois com o tempo procurou conhecer-lhe os rudimentos, graças ao permanente contato com Eduardo Souto, diretor de gravação da Casa Edison.

Augusto Vasseur — autoridade incontestável — sempre o julgou pianista interessantíssimo pela maneira peculiar de dedilhar o teclado. Executava um choro de sua autoria com técnica fora do comum, fazendo as fusas com a mão direita em toda a última parte, dando-lhe especial vivacidade. Não era pianístico, mas curioso, e Vasseur diz que nunca viu outro pianista fazer coisa igual. Quando morreu já escrevia suas composições, embora ainda precisasse de submetê-las ao amigo Vasseur para corrigir-lhe um ou outro senso.

Como cantava regularmente, pois se a voz não era grande coisa tinha muito ritmo, gostava de fazê-lo, acompanhando-se ao piano, quando não ao violão.

Em carta a Almirante, datada de 11 de agosto de 1946, o pianista Petit também se refere ao trabalho que lhe dava escrever as composições de Sinhô, “devido ao ritmo terrível desse pianista”.

Pianeiro de prestígio, Sinhô de quando em vez recebia homenagens expressivas como a que lhe prestou o seu grande amigo Alonso Guimarães, escrivão morador na Rua Araújo Lima (Aldeia Campista). Sinhô o visitava habitualmente, de violão em punho para ‘tirar’ seus sambas. Eram freqüentes as serenatas ali, a que compareciam Sinhô, Caninha (violão), Vítor (bandolim), Salvador ‘Barraca’ Correa (pandeirista e depois autor feliz da marcha Salve Jahu), Jorge da Silva Jardim e outros mais.

Alonso, que adorava essas reuniões, a que presidia, certa vez faz uma grata surpresa a Sinhô, que ao chegar na sala do amigo encontra um piano aberto à sua espera. O dono da casa o comprara em segunda mão especialmente para que o sambista o utilizasse. (3)

Almirante também contou episódio idêntico. Certa vez, pelo Carnaval, numa batalha de confete do Catumbi, Sinhô foi especialmente convidado. Como todo carioca que se preza, era fo1ião e freqüentador das festas daquele bairro. Ao chegar à batalha foi recebido como rei, com honrarias e atenções especiais. A orquestra silenciou. Silenciaram cordões e blocos, e a multidão entusiasmada cercou o coreto onde Sinhô subiu e foi encontrar, posto à sua disposição, um piano. E por muitos instantes ficou o povo ouvindo o ‘Rei’ executar suas músicas num pitoresco bambolear de corpo.

Fato semelhante ocorreu numa pensão alegre da Avenida Mem de Sá. A dona da casa adquiriu um piano por causa de Augusto Vasseur e de Sinhô, seus assíduos freqüentadores. E à noite os surpreendeu, apresentando-lhes a nova atração (bem diferente) da casa. Os dois boêmios passaram a noitada tocando ao piano e bebericando. E as mulheres ouvindo e chorando...

Mas o piano traria também complicações a Sinhô. Foi ainda Almirante quem contou o acontecido. Era em Botafogo. Sinhô estava numa festa em casa de família distinta. Havia grande curiosidade em torno dele. Muitos o chamavam de maestro. E ele nesse tempo ainda não conhecia bem as notas, embora já fosse um bamba do teclado.

No decorrer do sarau, espevitada mocinha, vendo-o executar com desembaraço e personalidade várias composições populares, dele se aproximou com uma parte musical nas mãos e pediu-lhe que a executasse, a fim de que ela cantasse, pois a pianista sua acompanhante não viera por qualquer motivo. Sinhô empalideceu, mas não se deu por achado. Viu o título da música: Elégie, de Massenet. Pôs a parte na estante, fez menção de que ia executá-la, mas antes de ferir o teclado, olhou para a mocinha e lhe disse.

— Sinto muito, senhorita, mas não posso executar essa música. Não me dou com esse autor... (4)


(1) Na verdade, Sinhô ao terminar o samba denominou-o A Bahia é boa terra. (2) Cantadas pelo trio Pepe-Oterito-Raul, o primeiro Francisco Pepe e o terceiro Raul Roulien, irmãos. (3) O Jornal, do Rio, 13 de dezembro de 1964. (4) O episódio é contado também na revista Weco n° 2, de dezembro de 1928 (ano I), por J. Iguassu, pseudônimo de Djalma de Vincenzi, que o dá como passado com o pianista M, bon vivant, “rapaz de boa educação e até nas horas vagas... humorista, e que sempre encontrou uma saída para tudo”. Despistamento do cronista, ou simples reprodução de invencionice? Mas, Augusto Vasseur admite a veracidade da história, da qual Sinhô teria sido de fato o protagonista.


Fonte: "Nosso Sinhô do Samba" / Edigar de Alencar - Edição FUNARTE - Rio de Janeiro 1981.

Nosso Sinhô do Samba - Parte 1

Retrato de Sinhô, 1926.
Na era dos três oitos, ainda no Brasil monárquico, em pleno mês da primavera carioca, no dia 8 (1), numa casa modesta da rua do Riachuelo de n° 90, nasceu um menino que tomou o nome de José. Gente modesta os pais: Ernesto Barbosa da Silva, conhecido por Tené, pintor e decorador de paredes, e Graciliana Silva. Depois o menino ganhou um irmão, de nome Ernesto, apelidado Caboclo.

Pouco se sabe da infância do garoto José, que talvez a tenha vivido pelo menos até o fim do século naquela mesma rua. Em 1897, José Luís de Moraes, o Caninha (1883-1961), meninote, mais velho, com 14 anos, conheceu o menino ainda ali.

E Maria Barbosa da Silva, portuguesa, que casou com Francisco Barbosa da Silva, filho de criação do pintor Ernesto, também viu o rapazito pela primeira vez na Rua do Riachuelo. Almirante, nas suas incansáveis pesquisas pioneiras, apurou que a família de José em 1900 já residia na Rua Senador Pompeu, casa n° 114, quase esquina da Rua São Lourenço.

A essa época, Ernesto Silva queria que o filho, carinhosamente chamado Sinhô, aprendesse a tocar flauta, instrumento de prestígio que dera justa fama, entre outros, a Joaquim Antônio da Silva Calado, a Viriato Figueira da Silva e a Pattápio Silva, sem dúvida admirações do pintor. Mas o garoto não se entusiasmava e não afinava com a flauta, preferindo mil vezes empinar papagaios, brinquedo de grande animação nas ruas da Saúde. Quanto à música, a que não era infenso, apreciava bem mais o piano dos avós, no qual já exercitava. Ao tempo, o piano era presença obrigatória nas residências da classe média para cima e até mesmo em algumas de gente menos remediada. Fazia parte da mobília, tal como hoje o aparelho de televisão e era ainda sinal de distinção e prosperidade:

— É gente rica! Tem piano!

Medíocre soprador de flauta, por imposição do pai, não largara de todo o instrumento detestado quando Pixinguinha, ainda broto, o conheceu pelos fins da primeira década do novo século. Nessa altura, aos poucos, o rapaz contrariando a vontade paterna já buscava outros instrumentos. Primeiro o cavaquinho, que também trocou pelo violão, para dedicar-se com mais afinco ao piano, no qual já era notado.

Houve um tempo em que morou na casa do seu irmão de criação Francisco, que usava o mesmo sobrenome — Barbosa da Silva. Era este cabo do Corpo de Bombeiros, casado com a portuguesa Maria. Foi de Francisco que Sinhô recebeu lições de violão, pondo de lado a flauta e o flautim. Mas foi no piano, principalmente, que começou a se espalhar. Dos treinos de casa passou a aparecer em outras salas e daí em sociedades diversivas, onde foi ganhando fama, talvez um tanto pelo seu espírito boêmio e folgazão. Certo é que no fim da década inicial deste século, Sinhô já era disputado como pianista pelos modestos clubes dançantes do Centro e de alguns bairros do Rio.

Nos fins do século passado, o bairro da Saúde era reduto de costumes e usanças africanas transportadas da Bahia. Pequenas mas inúmeras famílias baianas ali se acumulavam, trazendo para o Rio hábitos da velha metrópole, com marcadas reminiscências do continente negro. Entre as quais cantigas e danças próprias, festas, comidas, ritos e crendices.

Havia nas cercanias babalaôs de fama que realizavam sambas (festas de dança) e candomblés. Eram todos conhecidos como ‘tios’ e ‘tias’. Donga relembra vários deles, entre os quais a tia Isabel, das mais respeitadas e mãe de um dos grandes raiadores do samba do partido alto — Oscar do 24 —, assim chamado por ter servido na campanha de Canudos, como integrante do 24° batalhão. Outros companheiros de Oscar eram Hilário Jovino Ferreira, o maioral, Dudu e João Câncio, todos conhecidos como reis do ‘partido alto’, raiadores afamados, isto é, cantadores da chula.

Os candomblés da casa de João Alabá, babalaô morador na Rua Barão de São Félix, eram dos mais freqüentados. Mas havia ainda os dos tios Obedê e Sami, o primeiro na Rua João Caetano, 69.

Essas reuniões, embora freqüentes, não contavam com as simpatias das autoridades, dada a confusão que, de quando em quando, geravam. Por vezes se realizavam na moita, clandestinamente, o que lhes dava talvez maior sabor e sedução.

Mais tarde, algumas dessas famílias se foram espalhando pelo Centro e pela zona chamada Cidade Nova. Na segunda década do século atual, até 1926, a Praça Onze era, no dizer de Heitor dos Prazeres, uma África em miniatura. Nas suas proximidades, na Rua Visconde de Itaúna, n° 117, morava a Tia Ciata (Hilária de Almeida), macumbeira, acatada, vinda da Rua da Alfândega para ali assentar sua tenda festiva e movimentada. (2)

Naquela rua e na Senador Eusébio, que lhe ficava paralela, e noutras adjacentes, funcionavam sociedades dançantes que mais tomavam rumoroso e festivo o local. Os sambas (danças) transbordavam dos casinholos para os quintais e ruas. Daí provavelmente surgir a Praça Onze como autêntico berço do samba (música e canto). E a casa da Tia Ciata viria a ser precisamente o local do nascimento do samba feito música. Composição melódica e não dança de grupo. Nascimento ruidoso, discutido, como sua importância exigia, pois marcaria o advento de nova e expressiva fase da música popular brasileira.

No começo da segunda década deste século, Sinhô já se tornara conhecido como músico profissional. Tocando de ouvido, figurava como pianista de modestas agremiações dançantes e carnavalescas, entre as quais o Dragão Clube Universal, do Largo do Catumbi, 6 (1910); o Grupo Dançante Carnavalesco Tome Abença a Vovó (1914), instalado na Rua Senador Eusébio, 146; o Grupo Dançante Carnavalesco Netinhos do Vovô (1915), com sede na Praça da República, 25 e depois na Praça Onze (Rua de Santana, 55) e a Sociedade D. Carnavalesca Kananga do Japão, sediada na Rua Senador Eusébio, 44. A esta última Sinhô estaria ligado afetivamente, pois o pai pertencera ao seu quadro associativo e fora o confeccionador de um dos seus estandartes.

Prova do prestígio e da popularidade do pianista são os anúncios e convites então estampados na imprensa. Havia sempre a menção do nome — Sinhô — como atração da festa. As vezes até de forma curiosa como na pub1icação do Jornal do Brasil, de 3 de julho de 1915, em que ao fim do convite-anúncio para o baile da noite na sociedade Fidalgos da Cidade Nova, com sede também na Rua Santana, 55, aparecia a informação chamariz: “Abrilhantará este o choro de cordas regido pelo exímio flautista Pexinguim e o valente cronista Sinhô Pianista.

Em 1916 e 1917, Sinhô não era só o pianista, o ‘inspirado maestro’ e o dirigente do choro que carregava seu apelido já popularizado, mas também o carnavalesco disputado e diretor geral do grupo As Sabinas da Kananga (ou Grupo das Sabinas), ala importante da Kananga do Japão.

Durante o dia, fazia ponto na Casa Beethoven, Rua do Ouvidor, n° 175. Ali acabaria igualmente ‘oficializado’ como pianista. Relacionando-se rapidamente, também de quando em vez conseguia vender um piano, defendendo a comissão. (3) No ponto estratégico, bem dentro do coração da cidade, recebia amigos e ‘clientes’ e contratava tocatas de festas e bailaricos.

Da Rua Senador Eusébio, sede da Kananga, se escapava para a casa da Tia Ciata, ou lá fazia hora para o batente noturno. Na acolhedora e movimentada casa da Rua Visconde de Itaúna havia sempre música e nas proximidades do Carnaval o reduto fervia. A dona da casa, doceira e quituteira de classe, era devotada carnavalesca, tanto quanto o marido, Henrique de Almeida, que trabalhava no Jornal do comércio.

Por ali passavam e paravam obrigatoriamente ranchos e grupos que buscavam na popularidade e no julgamento de Tia Ciata estímulos e aplausos. Tudo muito particular e muito sincero, sem programação prévia nem qualquer coisa de oficioso, pois o Carnaval até então era festa exclusivamente feita pelo povo.

Componentes diversos das festas da Saúde freqüentavam assiduamente a casa de Visconde de Itaúna, onde, na noite de 6 de agosto de 1916, foi ouvido, em meio a outras cantigas e ruídos, o refrão versejado de um improviso musical que aludia à enérgica perseguição ao jogo que então se anunciava na gestão de Aurelino Leal na chefatura de polícia. O estribilho era de João da Mata e fora composto no morro de Santo Antônio.

No samba do partido alto foram acrescentadas outras partes inclusive cantigas folclóricas como Olha a rolinha, que havia sido apresentada com sucesso no começo do ano na burleta O Marroeiro, de Catulo e Paulino Sacramento, estreada no São José a 30 de março. Essa cantiga tinha sido levada das ruas para o Clube dos Democráticos pelo Mirandela, figura destacada nas rodas do samba, e ali foi entoada e decorada pela maioria dos presentes. Na casa da Tia Ciata os versos e a melodia do Olha a rolinha juntaram-se ao improviso cantado a muitas vozes e logo batizado como Ronceiro, ou Roceiro. Os versos eram de Mauro de Almeida, repórter de A Rua e cronista carnavalesco mais conhecido pelo nome de guerra Peru dos Pés Frios.

A composição voltou a ser cantada em noites sucessivas, e, entusiasmado com o seu sucesso entre paredes, Donga, que também nela colaborara mais tarde, a registrou com o título Pelo telefone (4) e a designação de samba, feita, ao que parece, pela primeira vez. (5)

Bastante discutida a música editada e gravada pelo Baiano em disco da Casa Edison, Rio de Janeiro, obteve retumbante sucesso no Carnaval de 1917, correndo todo o Brasil:

O chefe da folia, / Pelo telefone,
Manda me avisar, / Que com alegria,
No se questione / Para se brincar.

Ai, ai, ai  / E deixa mágoas pra trás
ò rapaz,  / Ai, ai, ai
Fica triste se és capaz / E verás.
Tomara que tu apanhes
Pra não tornar a fazer isso;
Tirar amores dos outros
Depois fazer teu feitiço...

Ai, se a rolinha / sinhô, sinhô,
Se embaraçou, / sinhô, sinhô,
É que a avezinha, / sinhô, sinhô,
Nunca sambou, / sinhô, sinhô,
Porque este samba / sinhô, sinhô,
De arrepiar, / sinhô, sinhô,
Põe perna bamba, / sinhô, sinhô,
Mas faz gozar, / sinhô, sinhô.


Na época ainda nâo se falava em direito autoral e é possível que Donga se apressasse em registrar o Pelo telefone receoso de que acabasse perdido como talvez tenha ocorrido com outras improvisações do grupo. Mas não o fez sem provocar barulho. E o Jornal do Brasil, de 4 de fevereiro de 1917, estampava essa nota, depois fartamente divulgada por Almirante:

“Do Grêmio Fala Gente recebemos a seguinte nota:

Será cantado domingo, na Av. Rio Branco, o verdadeiro tango Pelo telefone, dos inspirados carnavalescos, o imortal João da Mata, o mestre Germano, a nossa velha amiguinha Ciata e o inesquecível bom Hilário; arranjo exclusivamente pelo bom e querido pianista J. Silva (Sinhô), dedicado ao bom e lembrado amigo Mauro, repórter de A Rua, em 6 de agosto de 1916, dando ele o nome de Roceiro:

Pelo telefone / A minha boa gente
Mandou me avisar / Que o meu bom arranjo
Era oferecido / Para se cantar.

Ai, ai, ai
Leve a mão à consciência / Meu bem.
Ai, ai, ai
Mas por que tanta presença / Meu bem?

Ò que caradura / De dizer nas rodas
Que este arranjo é teu! / É do bom Hilário
E da velha Ciata / Que o Sinhô escreveu.
Tomara que tu apanhes / Pra não tornar a fazer isso
Escrever o que é dos outros / Sem olhar o compromisso.


Como se vê não houve nenhum propósito do lançamento da composição como ‘samba’ na acepção nova de canto e música ou de coreografia diferente da que antes significava. E enquanto nos versos que acompanhavam a nota do Grêmio Fala Gente, feita bem ao jeitão de Sinhô, há referências a ‘arranjo’, no próprio texto da declaração aparece a palavra ‘tango’. E na letra registrada pelo Donga, a expressão ‘samba’ se refere nitidamente ao samba de roda que “põe perna bamba”.

Mas a sorte é quem decide. E o Pelo telefone ficou como marco de uma nova modalidade de composição musical e coreográfica que viria a ser a mais típica das músicas urbanas do país. Antes do surgimento de Pelo telefone, o rapazola Sinhô já compusera uma que outra polca que executava nas agremiações onde tocava. Uma delas se intitulou Kananga do Japão. (6) Não editadas nem gravadas, essas produções ficaram limitadas aos salões festivos onde surgiram.

Pelo telefone seria assim a primeira composição musical em que Sinhô colaborava fora das ruidosas fronteiras da Kananga, em cujo seio foi sempre figura importante, seguindo a tradição paterna.

O lançamento e o sucesso do primeiro samba carioca provocaram encrenca feia, gerando um dos casos mais discutidos no cenário da música no Brasil. Sinhô entrava na música brigando. E nunca mais deixaria de brigar. Embora, ressalte-se, tais brigas carecessem de maior importância como elemento negativo da personalidade do compositor.


(1) Embora se tenha divulgado a data de 18 de setembro como do nascimento do sambista, seus parentes ainda vivos sustentam que o dia exato é 8 de setembro de 1888. (2) Falecida em 1925. (3) Informação verbal de Heitor dos Prazeres. (4) Registro n° 3.295, de 16 de dezembro de 1916. (5) Ary Vasconcelos e Mozart de Araújo afirmam que antes dc 1917 foram editadas músicas com a designação de ‘samba’. Samba roxo, p. ex. de Eduardo das Neves, traz a designação e é de 1915. (6) Muito mais tarde gravada por Altamiro Carrilho e sua Bandinha.


Fonte: "Nosso Sinhô do Samba" / Edigar de Alencar - Edição FUNARTE - Rio de Janeiro 1981.

O novo Hekel Tavares

"Hekel chegou ao Rio, vindo do Norte, na mais
extrema falta de recursos. Aqui o vemos, numa
foto raríssima, feita nos dias duros: costurando
seu único par de meias ..." (Carioca, 7/8/1937)
"Ser tratado pelo apenas pelo primeiro nome não é irreverência, é consagração. J. B. da Silva foi grande, e ainda o é na memória de todos, porque viu seu nome gloriosamente simplificado pelo povo que só o tratava carinhosamente por "Sinhô".

Hekel (1) Tavares, embora possuindo um nome exótico, incompatível com a sua personalidade eminentemente bugra, conseguiu esse máximo de cotação que é o não ter a lhe preceder o nome um sisudo "senhor", um prosaico "seu", um pedante "Dr." ou um conspícuo "maestro".

E a nossa gente foi tão longe com ele, nesse particular, que esqueceu-lhe até o sobrenome Tavares, numa simbólica manifestação de camaradagem; títulos e sobrenome, na opinião popular brasileira, são coisas convencionais; por isso a gente toda, numa solução genial, trata o notável compositor simplesmente por Hekel. De que, é o "Banzo"? Ora, é do Hekel ... Era só o que faltava que o "Banzo" fosse do senhor maestro Hekel Tavares ...

Um senhor maestro só produz ruidosos “operões” que o povo esquece. Afinal, quanto nome esquecido, de gente que no Brasil, como no estrangeiro, produziu massudas e arquivadas partituras cheias de "dós" incrivelmente agudíssimos e "fás" absurdamente graves? São nomes que a gente só encontra nos dicionários, devidamente acompanhados de títulos pomposos. Mas ninguém sabe se Mozart era nobre ou se Bach era doutor. Já ouviram falar em maestro Mozart ou maestro Bach? Nunca. Apenas e colossalmente em Mozart e Bach. Esta simplificação é tudo, esse desrespeito é a adoração.

Pois é do Hekel que nos ocuparemos hoje. Do Hekel herói. Desse Hekel que teve valor bastante para abdicar de uma situação excepcional no cenário artístico de nosso país, enveredando por uma trilha bem diversa daquela que ele seguia cheio de celebridade e das vantagens materiais que a celebridade produz. Há dois anos que o autor de "Sussuarana" não lançava nenhuma novidade. Não fosse a popularidade imensa alcançada pelas suas produções anteriores, cujas tiragens foram a alguns milhares e esses dois anos de reclusão teriam sido a morte do Hekel compositor.

Teria ele desistido da música?

Não se explicava de outra maneira o su silêncio, porque a sua inspiração sempre foi proverbial pela perenidade; seus cento e três trabalhos impressos atestam um labor constante.

Mas ele não desistira da música; apenas e simplesmente ele se dedicara todo à música, àquela cuja fatura demanda sacrifício mas produz coisas colossais como a cultura popular e a formação da nacionalidade. Hekel, que vinha apresentando ao público do Brasil os diamantes brutos das nossas melodias cuidou durante esses dois anos, de burilá-los, apresentando-os de maneira definitiva e tendente a torná-los conhecidos em todo o mundo. O seu trabalho de vinte e quatro meses redundou nesse sucesso estrondoso que foi "André de Leão e o Demônio de Cabelo Encarnado", suíte sinfônica baseada em poema de Cassiano Ricardo. Essa partitura, que foi gravada por iniciativa do autor, está sendo muito ouvida na Europa; na Alemanha já cogitam de editá-la em língua nacional e jornais de toda a Europa referem-se elogiosamente à música, colocando o seu autor entre os grandes músicos sul-americanos.

Desejoso de tornar conhecido dos nossos leitores o novo Hekel, procuramo-lo em sua residência, onde ele estava imerso nos preparativos para o lançamento de uma novidade sensacional: um livro para a iniciação musical das crianças! Nesse livro Hekel expõe da maneira mais simples e concreta os mesmos elementos formadores da enfadonha "artinha", que é o espantalho de todos os garotos destinados à aprendizagem da arte dos sons. Exemplos pitorescos incutem nas mentes infantis as normas da teoria musical, nesse curioso trabalho cujos direitos autorais acabam de serem registrados nos países europeus e na América do Norte.

Uma das páginas do livro representa a construção do
pentagrama e os tangarás que simbolizam as sete
notas musicais.
Hekel nos falou sobre a gênese desse seu livro:

— O sucesso do método está no resultado que se pode obter tendo como objetivo a memória visual da criança.

Cenas de colorido forte — continua Hekel — ilustram uma pequena historieta através da qual, sem que a criança a aperceba, lhe são ministrados conhecimentos básicos de teoria musical.

Nos vários testes que fiz com crianças de idades diversas, pude observar a facilidade de assimilação.

Inicialmente, Zilo, o pretinho sabido, forma com o auxílio das linhas telegráficas um pentagrama no espaço, e os tangarás passam a ter os nomes das notas que vão sendo colocadas nos lugares respectivos.

Explicado os nomes das sete notas, o negrinho, que é o pivô da pequena novela, apresenta o "General Sol" e a sua função no pentagrama.

Note que apesar de se tratar da figurinha de um general, a clave de Sol está perfeitamente desenhada. Assim, dentro de um argumento pitoresco, a criança fica conhecendo os sinais e o que eles representam.

Depois que os lugares das notas estão bem fixados, os pássaros e o general desaparecem para dar lugar a um pentagrama normal com a clave e as semibreves, cujo valor é explicado no capítulo de divisão.

Contudo, como se trata de distrair a criança o mais possível, os nomes das notas são lembrados com um objeto que comece com a mesma sílaba. Veja que o "fá", na 5a. linha tem, ao lado, uma faca, o "sol", tem um soldado, e assim por diante.

Na divisão do compasso de 4 tempos, cujo número inteiro é uma semibreve, está representada por uma laranja. Não divido uma semibreve, divido uma laranja!

Nos diversos testes que fiz os resultados foram sempre coroados de êxito — finaliza Hekel.

— Quem é o editor?

— Eu mesmo. A percentagem dos editores elevaria por demais o preço do exemplar. Por isso resolvi fazer eu mesmo a impressão, a fim de torná-la acessível a bolsos humildes.

— Diga-nos algo sobre os seus atuais trabalhos de composição.

— Atualmente trabalho uma rapsódia nordestina, que apresentarei brevemente com coreografia a cargo do célebre bailarino Francis. Este meu trabalho terá, como complemento orquestral, a colaboração de vozes humanas sem palavras. Fixa diversos aspectos da vida nordestina e desenvolve sobre temas regionais interessantíssimos. Será uma afirmação bem categórica de nossa riqueza musical. Além dessa rapsódia tenho planejados diversos trabalhos que obedecerão às normas que estabeleci. A nossa riqueza folclórica impõe-se ao compositor a obrigação de divulgá-la universalmente, o que importa num trabalho muito sério que nem sempre é aceito pelo povo, mas que é o único que influi sobre o seu progresso mental, forçando-o à compreensão das manifestações de arte verdadeira.

Despedimo-nos de Hekel, criatura rara, que acima de seus interesses pessoais coloca os interesses populares e os da arte."

Nota: (1) Na revista, escrito "Heckel".


Fonte: Revista semanal "Carioca", de 7/8/1937 (artigo atualizado para o nosso português) — Foto e figura extraídas dessa edição.

Ouvindo Alda Verona

"O ideal do cantor de rádio é perpetuar a sua voz no disco. A gravação encerra o desejo do público em tê-lo permanentemente a mão, sem depender da programação do rádio, das perturbações atmosféricas que nas longas distâncias dificultam a audição do astro e das mil e uma dificuldades consequentes da transitoriedade da irradiação.

A gravação, enfim é a consagração do artista, a meta da sua carreira e, quando ele não tem personalidade bastante para garantir o prestígio, o seu fim. O disco, ou populariza definitivamente ou mata o artista.

A cotação enorme de Francisco Alves, Carmen Miranda, Sílvio Caldas ou Almirante, foi produzida mais pelo disco do que pelo microfone. Entre os artistas brasileiros mais beneficiados pela gravação acha-se Alda Verona, elemento veterano do nosso rádio ao qual pertence desde os seus primórdios.

Interpretando um gênero altamente simpático, que é o da canção que não sendo totalmente popular também não é absolutamente pertencente à espécie fina, Alda Verona consegue, mercê da sua bela voz e de sua excelente dicção, tornar interessante qualquer melodia que interprete, por mais ingênua que seja a sua composição. A artista que aqui focalizamos hoje tem a inteligência de escolher para as suas gravações, não somente as páginas de música bonita mas também aquelas cujas palavras sejam de molde a produzirem no ouvinte um máximo de sugestão.

Suas gravações são notáveis de romantismo.

Voltando agora de Pernambuco, onde esteve pela segunda vez especialmente contratada para cantar na PRA-8, Alda Verona esteve em nossa redação.

— É sempre agradável rever o meu querido Rio de Janeiro, embora o Norte seja lindo e todo ele pitorescamente cheio de cor local. Mas o Rio é uma cidade única, insuperável. As paisagens cariocas têm o dom maravilhoso de não se tornarem vistas demais, mesmo por aqueles que a contemplam durante toda vida. Sempre morei à beira-mar, percorrendo diariamente a zona que liga Copacabana à cidade: descubro todos os dias um encanto novo, uma nova tonalidade luminosa nos aspectos panorâmicos que me maravilham há tanto tempo.

— Quais as suas impressões sobre Pernambuco artístico?

— Pernambuco como todo o Norte brasileiro, faz por te garantir no conceito que todo o país forma das suas possibilidades intelectuais. Por isso produz sempre, conseguindo o seu "desideratum".

— Musicalmente? ...

— Autores que escrevem para o gênero que interpreto são inúmeros no Norte, e todos interessantes. Mas é mister citar os dois de minha preferência, cujos nomes já estão sendo divulgados no Rio: os pernambucanos Nelson Ferreira e Waldemar de Oliveira; são dois artistas cuja inspiração é das mais ricas. Trago para o Rio, integrando o meu repertório, algumas produções desses pernambucanos inteligentes. Possivelmente gravarei essas lindas canções do Norte, proporcionando-lhes a divulgação que merecem.

— No Brasil quais os compositores que prefere?

— Joubert e Sivan.

— E fora do Brasil?

— Os compositores de opereta que é o gênero musical de minha preferência. A opereta a gente não sabe perfeitamente se é um espetáculo exclusivamente musical, ou teatral ou coreográfico. Porque reúne em si todas essas formas de arte da maneira mais evidente. Jamais trabalhei no teatro, mas se o fizesse seria cantando operetas.

— Como começou no rádio?

— No tempo da velha Rádio Sociedade. Minha professora Eloísa Mastrangiolli, costumava cantar periodicamente ao microfone daquela estação; não digo contratada, porque naquele tempo não eram pagos os artistas de rádio, pois as estações, incipientes, não tinham verba para tanto; os dias iniciais do nosso rádio foram feitos com o sacrifício de muitos. Mas devo contar como comecei no rádio. Eloísa Mastrangiolli, tendo fixado um programa à última hora, não pode executá-lo porque adoeceu subitamente. Solicitou-me o auxílio e eu cantei no seu lugar. Cantei e continuei cantando até hoje. No rádio fui, também, "speacker", me encarregando de diversos programas.

— Como começou a gravar?

— Minha voz, muito própria para o microfone, chamou a atenção dos técnicos que me convidaram para gravar. Venho de cantar para a fábrica Odeon uma série de discos que servirão especialmente para propagar a música brasileira no estrangeiro. E fico contente por saber que assim posso ser de utilidade para o Brasil.

E nós também, porque sabemos perfeitamente que a divulgação melhor de nosso país é feita mais pelos elementos artísticos que pelos diplomáticos. A diplomacia é convencional e a arte é humana."


Fonte: "Carioca" — revista semanal, de 28/8/1937.

Nora Ney: A Iracema da Voz de Mel


Da "cantina" de César de Alencar até aos pináculos da carreira radiofônica - Um contrato que teve a duração de vinte e quatro horas (Reportagem de Armando Migueis - Foto de Milan).

Tudo não passou de simples brincadeira. Dona Iracema Pereira Maia, numa dessas noites bem cariocas cismou de distrair o espirito, e foi, em companhia de pessoas amigas, dar um giro pela “cantina” do César de Alencar. Gostou do ambiente. Gostou dos frequentadores e por fim gostou do pedido que lhe fizeram os presentes: para que cantasse alguma coisa. Viu que o ambiente pedia música francesa. Por essa razão, foi buscar no repertório do irrequieto Charles Trenet uma de suas bonitas canções. No final, pediram “bis”, e pediram também outros números deliciosos.

Como complemento, um convite de César de Alencar para que aparecesse no sábado seguinte em seu programa. Ele gostaria de experimentá-la em “Será que eles vão?” Dona Iracema prometeu que ia, e foi realmente. Como na “cantina”, escolheu música francesa. César e o auditório vibraram com aquela voz inconfundível.

Haroldo Barbosa, porém, vibrou ainda mais. Tanto, que não se afastou do aparelho receptor um só segundo, apesar de estar na horinha do Teófilo de Vasconcelos dar o resultado de mais um páreo corrido. E, valendo-se do telefone, fez um convite a dona Iracema: Desejava sua presença nos programas da Rádio Tupi. Como compensação, oferecia cem cruzeiros de cache pelas audições diurnas. A noite, dobrava a parada, isto é, o cache seria de duzentos cruzeiros. Dona Iracema pediu vinte e quatro horas para resolver.

Nessas vinte e quatro horas, deixou de preparar o jantar, esqueceu-se de telefonar para a costureira, e não conseguiu pregar olhos, embora se deitasse mais cedo.

As seis horas da manhã do dia imediato, sua resolução estava tomada: Trocaria os afazeres domésticos pela carreira radiofônica. Deixaria de ser formiga para se tornar cigarra. E, quando Haroldo Barbosa abriu a porta de sua sala de trabalho, lá encontrou dona Iracema. Ela madrugara nos
estúdios da PRG-3, embora soubesse que o produtor de “Semana em Revista” sempre chega atrasado.

Houve o costumeiro bate-papo. Haroldo falou numa carreira promissora. Disse que a Tupi era o caminho aberto para o estrelato. Por fim, prometeu um contrato, desde que ela correspondesse.

Nessa altura dos acontecimentos, dona Iracema Ferreira Maia passou a ser Nora Ney. Um nome simples, porém radiofônico. Ela gostou, e os ouvintes também.

Nora Ney correspondeu. Haroldo Barbosa cumpriu a promessa. Deu-lhe um contrato. Três mil cruzeiros por mês. Esse contrato, porém, teve a curta duração de vinte e quatro horas: é que a Rádio Nacional, no afã de contratar elementos de valor para seu “cast”, dobrou a quantia oferecida pela
PRG-3.

E lógico que a estrela preteriu quem pagava mais. Todavia, teve de permanecer “na cerca” durante trinta dias, afim de conseguir a rescisão do contrato que assinara. Feito isso, passou-se com armas e bagagens para a PRE-8, sua atual estação.

Nora Ney é urna criatura diferente. Nela há naturalidade nos gestos, nas palavras, e nas atitudes. Não faz segredo dos contratempos, nem esconde os dissabores por que tem passado. Dos seus triunfos, porém, quase não fala. Parece ficar encabulada quando tem de mencioná-los.

A estrela tem uma profissão liberal: Formou-se contadora pela Escola Amaro Cavalcanti. Do contato com os estudos nasceu uma certa ojeriza pelos afazeres domésticos, a ponto de preferir os quitutes que outros fazem a ter de enfrentar a cozinha. No lar, divide seu tempo entre Vera Lúcia, uma garota de nove anos, e Hélio, um menino de cinco. Fora disso, cuida de sua coleção de xícaras e de seus selos.

Não acorda cedo nem por um decreto. Justifica-se: é que saí do Copacabana às três horas da manhã. Sim, porque Nora Ney é uma das atrações máximas do show que essa boate oferece a seus frequentadores. Interpretando como ninguém as bonitas composições do notável Antônio Maria, a exclusiva da Rádio Nacional criou um público bastante invejável. E, quando a cantora anuncia “Menino Grande” ou “Ninguém me ama” um frenesi domina completamente a turma.

Por falar em “Ninguém me ama”, esse número constitui um recorde de vendagem de gravações. Antônio Maria e Fernando Lobo não poderiam ser mais felizes quando fizeram esse grande samba. Do Leblon até Santa Cruz, toda a população cantarola a melodia. Sucesso quase tão grande teve “Menino Grande”. As casas de discos não tem mãos a medir. Quanto disco apareça, quanto disco é vendido.

Com trinta anos de idade, um ano e pouco de rádio, e um futuro promissor à sua frente, Nora Ney promete, agora, depois do carnaval, uma nova gravação. Como sempre, Antônio Maria está no meio. Trata-se de “Onde anda você”, em que aparece também Reinaldo Dias Leme. Na outra face, um número de Luiz Bonfá, intitulado “De cigarro em cigarro”. A julgar-se pelas gravações anteriores, e pelo nome dos compositores, teremos um novo sucesso.

Iracema Ferreira Mata, que cedeu lugar a Nora Ney, calça sapatos número 35, usa manequim 42, não tolera bebidas e é francamente da comida italiana. Aliás, descende de italianos e alemães. Fuma cigarros Hollywood, e, nas refeições, bebe cerveja preta. Sua cor predileta é o verde.

Por estranho que pareça, a feliz intérprete de “Ninguém me ama” aspira, no futuro, a possuir uma bomba de gasolina, mesmo não tendo nenhum “cadillac”.


Fonte: Revista Cinelândia, edição 14, junho de 1953.

Neusa Maria: A Rainha do Jingle


De empregada no comércio a um programa de calouros ... e do programa de calouros para a constelação da Rádio Nacional ... eis a história de como a jovem Vassiliki transformou-se em Neusa Maria. (Reportagem de Armando Migueis e fotografias de Milan no Jardim Zoológico do Rio)

Num calmo bangalô de uma tranquila rua do Grajaú, a senhora Vassiliki Purchio construiu seu “home sweet home”. E ali, no aconchego de seus discos, de seus álbuns de recortes, das cartas que recebe dos fãs, que ela passa seus momentos de lazer, entretida com sua filhinha Elizabeth. Isto, desde 1944, quando trocou o rádio bandeirante pelo carioca, atendendo a um convite do veteraníssimo Renato Murce, que, sob a influência do animador César de Alencar, não perdeu tempo em contratá-la para o “cast” da Rádio Clube do Brasil.

Mas, perguntará o leitor desavisado: quem será Vassiliki Purchio, uma vez que os locutores guanabarinos jamais pronunciaram esse esquisitíssimo nome? E, como é do nosso dever, apressamo-nos em esclarecer a dúvida. Trata-se, nada mais nada menos, do que da simpatiquíssima estrelinha Neusa Maria. Sim, da intérprete de tantas melodias de sucesso, cuja presença no elenco da Rádio Nacional, a que está presa por contrato até aos últimos dias de 1954, é uma garantia de popularidade absoluta entre os aficionados do rádio. Aliás, a popularidade de Neusa Maria está confirmada através das numerosas propostas que recebe para participar de diversos shows em diferentes cidades brasileiras.

Recentemente ainda, ao chegar de uma excursão a diversas cidades mineiras, a apreciada cantora recebeu convite para uma ligeira temporada em Curitiba. Mas a oferta não compensava a viagem, motivo por que a estrela aceitou um contrato vindo de sua terra, isto é, de São Paulo.

A exclusiva da PRE-8 iniciou-se no comércio. Por sinal, pregando uma colossal mentira ao gerente da loja que a contratou para caixa. E que ao invés de dar sua verdadeira identidade, preferiu arranjar outra, tão complicado achava o nome de Vassiliki. Por isso, quando teve de apresentar a carteira profissional, a inteligente “caixa” começou a sentir uma furiosa tremedeira. Pensou, de início, numa despedida sumária . . . mas o gerente, após ouvi-la, declarou que bastava aquele Vassiliki para perdoá-la da peta ...

Do comércio, Neusa Maria resolveu dar uma espiada no programa de calouros que o saudoso Otavio Gabus Mendes apresentava ao microfone da Rádio Record. Da espiada, veio a inscrição. Da inscrição veio o convite para ingressar no “cast” da PRB-9. Esse convite, por sinal, veio através do fio telefônico, certa vez quando Otavio Gabus Mendes, no dia do programa, se encontrava acamado. Da PRB-9 a intérprete de nossas melodias populares passou para a Tupi bandeirante, onde recebeu a consagração de “a estrela de 1943”, título obtido por intermédio de empolgante concurso levado a efeito por um dos jornais paulistas. Neusa Maria, na votação popular, ganhou de ponta a ponta.

Sua estrela a começou a brilhar num programa de calouros quando estava empregada no comércio.

Hoje a cantora paulista é um nome conhecido de Norte a Sul. Gravando para a Sinter, onde tem posto na cera sucessos indiscutíveis, como “Murmúrios”, “Marcha do beijo”, “Eu quero ver um samba” e tantos outros, e figura ainda na vanguarda daqueles que são chamados a gravar jingles. Agora mesmo, esse popularíssimo “Isto faz um bem”, deve-se a voz bonita da nossa entrevistada. Daí, possuir em seu acervo de jingles gravados nada menos de cento e cinquenta “musiquinhas”, que lhe proporcionaram o pomposo e invejável título de “Rainha do Jingle”, láurea que a estrela faz questão de usar.

Atualmente as casas de discos estão expondo à venda “Quisera”, bolero de Getúlio Macedo e Lourival Faissal; “Esperei Alguém”, samba de José Braga; “Usted”, versão de Roberto Faissal, e “Somente ilusão”, de Claribalte Passos, números esses que, como as anteriores gravações da exclusiva da Rádio Nacional, aumentarão a renda da Sinter.

Neusa Maria vive uma vida diferente fora do rádio. Não frequenta boates, nem se Interessa muito pelos jogos de futebol, e prefere a vida ao ar livre. Ela gosta do contato com a natureza. Daí, seus passeios à Quinta da Boa Vista, ao Jardim Botânico, ao Parque da Cidade e a outros recantos pitorescos da Cidade Maravilhosa. Nessas ocasiões, ela se torna uma criança grande, acompanhando sua filhinha Elizabeth, de seis anos de idade, nas diabruras que a mesma prática. Assim aconteceu por ocasião desta reportagem, em que fomos bater às portas do Jardim Zoológico. A cantora divertiu-se a valer com o hipopótamo “Nancy”, gostou de passear no camelo, e tentou fazer uns carinhos à girafa (o que não conseguiu por faltar uma escada).

Elizabeth, a filhinha de Neusa Maria, virou fã do camelo e quer voltar a visitá-lo.

A jovem artista possui um milhão de admiradores que a prestigiam com seu aplauso franco e sincero, tudo fazendo para que ela desfrute, cada vez mais, de maior prestígio no “broadcasting”, a fim de que seu nome permaneça em dia ao lado dos grandes cartazes. E Neusa Maria, compreendendo essa preferência, tudo faz para merecê-la, quer selecionando rigorosamente seu repertório, quer atendendo às solicitações daqueles que lhe endereçam um pedido para interpretar este ou aquele número. E nesse dilúvio de cartas que, muitas vezes, aparece uma declaração de amor, um pedido de casamento, ou mesmo a solicitação de um objeto de uso pessoal, a fim de ser guardado como “hobby”.

Há, por exemplo, entre os missivistas de Neusa Maria, um que é rival do acadêmico Adelmar Tavares. Todas as semanas, inspirado na bonita e agradável voz da exclusiva da PRE-8, ele compõe quadrinhas que o correio se apressa em levar.

Todas essas demonstrações de amizade a estrela corresponde com a interpretação dos bonitos números que formam seu repertório, porque seu coração, meus amigos, já está de há muito ligado ao do seu príncipe encantado, que é o paizinho dessa inteligente e viva Elizabeth.


Fonte: Revista Cinelândia, edição 20, setembro de 1953.

Esther de Abreu: O Rouxinol de Coimbra


Esther de Abreu foi ficando no Brasil ... e o Brasil gostou de Esther de Abreu - Uma voz do cancioneiro português que sabe também interpretar a nossa música popular. (Reportagem de Armando Migueis e fotos de Milan)

Não foi sem surpresa que entramos no apartamento de Esther de Abreu, numa rua tranquila de Copacabana. É que a bonita intérprete do cancioneiro português entregava-se, então, à limpeza do lustre que orna a sua sala de estar. Percebendo nosso espanto, fez questão de declarar que, como ex-interna do Colégio Santo Antônio, em Lisboa, é uma completa dona de casa, sabendo cozinhar, cerzir meias, fazer tricô e, ainda, cuidar da arrumação do “lar, doce lar”, conforme víramos.

Espírito comunicativo e folgazão, Esther de Abreu coloca o jornalista a vontade, lamentando a ausência de um bom licor da santa terrinha. E, com a desculpa, vem a informação de suas preferências culinárias. Ela não é do bacalhau à moda, nem tampouco das papas. Gosta, isto sim, de uma valente feijoada completa. Também admira, e muito, a comida à baiana. Às vezes, porém, para variar, enfrenta mesmo um cozido.

A “glamorosa” intérprete de “Coimbra” não fuma. Justifica esse desinteresse pelo cigarro por entender que ele quebra a linha de feminilidade que toda representante do sexo frágil deve possuir. Em compensação, distrai-se jogando “buraco”. Confessa fazer diabruras quando consegue uma “canastra” ... Aliás, Esther lamenta o tamanho do apartamento, em que se encontra provisoriamente e que não permite reunir as pessoas de suas amizades para uma partidazinha. Em compensação, de sua varanda, pode olhar sua filhinha Maria Manoela, que estuda num colégio em frente, e isto, a seu ver, compensa.

Numa atitude glamorosa, a intérprete do cancioneiro português posa com seu vestido de baile.

A exclusiva da Rádio Nacional é uma recordista de viagens. Conhece o território brasileiro de ponta a ponta. Já cantou para os nossos irmãos do Norte; exibiu seus dotes vocais para os nossos patrícios do Sul, e vive alegrando a turma do Centro. Assim, quando do lançamento de “Coimbra”, conseguiu vender quase cem mil discos, embora tivesse de enfrentar a concorrência de outros grandes intérpretes, como Alberto Ribeiro, Albertinho Fortuna, etc. Aliás, com a belíssima composição de Antônio Ferrão, Esther de Abreu levantou a taça de “Parada dos maiorais”, instituída pelo programa César de Alencar.

Mas não só a música portuguesa tem entrado nas cogitações da vitoriosa artista. Ela é francamente de nossas melodias: estreou num dos carnavais cariocas interpretando duas marchinhas. Fez sucesso, e acabou caindo no samba rasgado e no baião, cantando “Serenata”, samba escrito por Linda Batista há mais de dez anos, e “Baião do Amor”, composto pela queridíssima Carolina Cardoso de Meneses. São duas gravações Sinter que revelam claramente as qualidades de Esther de Abreu para a música popular brasileira.

Esther tem ganho lembranças artísticas e vários troféus. Eis um deles no flagrante.

Vindo ao Brasil para participar do show “Sonho nas berlengas”, apresentado pelo Copacabana Palace, a intérprete de “Cabral no Carnaval” convenceu, deixando-se ficar por estas plagas. É que seu contrato com aquela casa de espetáculos, em virtude do êxito obtido, teve de ser dilatado.
E, nessa altura dos acontecimentos, aconteceu a Rádio Nacional. Ingressando no “cast” da PRE-8, conquistou de imediato, a simpatia geral, a ponto de participar da maioria de programas musicais dessa estação. Com o contrato da Rádio Nacional vieram outras propostas. Turnês pelo Brasil fora. Participação nos shows das grandes boates. Temporadas nas emissoras do interior. Tudo isso, trocado em cruzeiros, representa uma apreciável parcela no orçamento de quem vive do canto.

Esther de Abreu descende de uma família de artistas. Agora mesmo, na Companhia de Walter Pinto, figura uma de suas irmãs. É a vedete Gilda Valença. Anteriormente, outra de suas irmãs brilhou numa companhia de revistas. Referimo-nos a Julieta Valença, que o casamento afastou da ribalta, apesar da carreira promissora que vinha realizando. Outro parente próximo da cantora integra um conjunto musical. Com esse punhado de valores entre os seus, Esther não escapou à vocação. Tanto que continua aumentando o cartaz da família, quer participando dos programas da Rádio Nacional, quer gravando bonitas composições, como o fado “Confesso”, de Frederico Valério, que a Sinter lançou. Também de Paulo Tapajós, a exclusiva da PRE-8 gravou “Segredo”. Com esse número, Paulo Tapajós estreou no fado. Estreou por sinal auspiciosamente conhecendo-se a personalidade da intérprete.

Entre a música e o lar vive, portanto, Esther de Abreu. Uma vida agradável para quem nasceu “cigarra”. Para quem procura alegrar a alma do povo com as melodias suaves do cancioneiro internacional.  Sim, porque ela canta em quatro Idiomas. Tanto que, ao microfone da Emissora Nacional de Lisboa, conquistou um prêmio interpretando composições em inglês, francês, espanhol, português. Em nosso idioma ela escolheu “Maringá”. Saiu-se a contento e a contento continua no agrado dessa gente hospitaleira que nasceu sob o signo do Cruzeiro do Sul.


Fonte: Revista Cinelândia, edição 21, setembro de 1953